Cotidiano
Caso de erechinense com doença degenerativa vai virar filme
Em dezembro de 2014, à espera de um transplante de fígado, o engenheiro cartógrafo Giovane de Sena Brisotto, então com 28 anos de idade, deixou Erechim, no interior gaúcho, para uma viagem de mais de 50 mil quilômetros ao redor do mundo. Nessa jornada, percorreria países como Marrocos, Grécia, Egito, Omã, Índia, Nepal, China e Japão. Portador de uma doença genética degenerativa e sem cura, estava acompanhado por uma equipe de filmagem, que registraria seus passos. O gaúcho era o protagonista do filme O Sentido da Vida, do diretor português Miguel Gonçalves Mendes.
A enfermidade em questão atende por vários nomes. No passado, era chamada de doença dos pezinhos. A partir da década de 1950, começou a ser conhecida como doença de Corino de Andrade, em referência ao neurologista português que a descreveu. Hoje, são mais usuais as designações polineuropatia amiloidótica familiar (PAF) e paramiloidose. É um mal que surgiu no século 12, no norte de Portugal, a partir da mutação de um gene. Espalhou-se pelo mundo com as navegações, o colonialismo e a imigração. Está presente principalmente em regiões por onde os lusitanos andaram, com destaque para o Brasil. No Rio Grande do Sul, uma das cidades com mais incidência é Rio Grande, onde Giovane nasceu.
O filho de uma pessoa com PAF tem 50% de chances de herdar a mutação. Por isso, a doença castiga famílias, de forma avassaladora e dolorosa, geração após geração. Os primeiros sintomas costumam aparecer por volta dos 30 anos, com sobrevida de cerca de uma década. A partir dos anos 1990, começaram a ser realizados transplantes hepáticos, como aquele que Giovane esperava ao partir em viagem, para prolongar a vida dos doentes. A equipe de O Sentido da Vida acompanhava o gaúcho com a ideia de conduzir um portador da PAF pelos lugares do planeta por onde os portugueses espalharam o gene alterado. Atualmente em fase de finalização, o filme tem chamado a atenção para a paramiloidose, que vive um momento único, com novos tratamentos que podem transformá-la em uma doença crônica, a exemplo do que aconteceu com a aids.
Na família de Geovani, foram muitas vítimas, pelo lado materno, de origem lusa. A mãe, Iolanda, começou a apresentar os primeiros sinais aos 40 anos e morreu aos 49, em 2001. Deixou quatro filhos. Além de Giovane, há Geison, 31 anos, Daniele, 34, e Daiane, 36. Até Iolanda, apesar dos casos sucessivos, o clã sabia que havia algo errado, mas desconhecia a causa. Depois da morte dela, com diagnóstico de PAF confirmado por biópsia, Daiane começou a investigar e descobriu que o Hospital de Clínicas de Porto Alegre fazia testes que permitiam saber se uma pessoa portava a mutação.
Os quatro irmãos viajaram à Capital e submeteram-se ao exame, por volta de 2006. Daniele e Daiane estavam a salvo. Giovane e Geison portavam a mutação. Isso significava uma chance próxima a 90% de desenvolver paramiloidose.
— Quando eu soube que existia esse exame, fui atrás disso, porque era a mais velha. Queria saber antes de ter algum sintoma. O resultado foi uma surpresa, porque na família todos os casos que a gente conhecia eram de mulheres. Não imaginamos que seriam eles dois — conta a engenheira civil Daiane.
O sonho de realizar uma volta ao mundo
No Réveillon de 2012, no litoral, alguma coisa mudou na forma de Giovane caminhar. Eram os primeiros sintomas da PAF, que em geral começa por dor e perda de sensibilidade nos pés e depois vai afetando progressivamente outros tecidos e órgãos. Giovane entrou na fila do transplante. A PAF faz o organismo produzir uma proteína instável que é responsável pelos danos. Como essa proteína é produzida predominantemente pelo fígado, a troca do órgão tem potencial para retardar o avanço do doença.
Tentando ajudar os irmãos, Daniele, que é médica, soube de um congresso sobre a PAF que ocorreria no Rio de Janeiro e foi até lá em busca de respostas. Conheceu uma especialista, Márcia Waddington Cruz, e marcou consulta com Geison e Giovane. Na mesma época, Miguel Gonçalves Mendes estava em contato com Márcia, à procura do protagonista perfeito para seu filme, que vinha tendo dificuldade para achar. A profissional sugeriu os irmãos gaúchos.
O diretor de cinema propôs fazer uma entrevista por Skype. Geison não quis participar do casting. Giovane topou. Na conversa, Miguel não contou que a ideia era viajar pelo mundo, mas perguntou que sonho o rapaz gostaria de realizar, se soubesse que estava para morrer.
— Viajar pelo mundo — respondeu Giovane.
O diretor percebeu que havia encontrado seu protagonista. Quando soube da volta ao mundo, o jovem ficou em dúvida, por temer complicações da doença e por causa do transplante, mas consultou os médicos e eles deram sinal verde. Seriam apenas seis meses fora. Daiane viajaria junto, para haver suporte familiar durante a aventura.
O ponto de partida foi Portugal, onde Giovane visitou a região em que surgiu a mutação, conheceu outros portadores e teve contato com especialistas. A equipe do filme obteve no país uma recém-lançada medicação contra a PAF, que ainda não estava disponível no Brasil. O gaúcho tomou o remédio por quase um ano, mas não sentiu efeitos — talvez porque a PAF já estivesse avançada.
Em Roterdã, o grupo pegou um navio que parou em Espanha, Marrocos, Malta e Grécia, rumo à Península Arábica e à Índia. A ideia era que a viagem fosse toda por via terrestre ou navegação, como no tempo da expansão portuguesa. A Índia foi atravessada de sul a norte. No Nepal, Giovane subiu ao teto do mundo, o Himalaia. Também pegou uma infecção estomacal que o manteve hospitalizado durante 15 dias. O episódio abalou sua convicção, e ele chegou a cogitar a volta ao Brasil. No fim, decidiu encurtar a viagem, indo apenas para China e Japão e fazendo trajetos aéreos. Em território japonês, esteve numa região onde a presença portuguesa foi forte, deixando como herança a PAF. Conheceu uma jovem portadora do mal, com quem conversou por meio de um aplicativo de tradução.
— Foi um dos casos mais interessantes, porque no Japão a doença é muito estigmatizada. Lá, as famílias que têm a doença não querem que os outros saibam e tentam esconder o familiar. A viagem foi uma experiência marcante. Giovane conheceu outras culturas e pessoas que também tinham a doença, o que fez ele ver que não estava sozinho, que do outro lado do mundo havia gente em situação igual — conta a irmã.
Transplante poderia prolongar a vida
Em fevereiro de 2015, surgiu um fígado para transplante. Giovane era o primeiro da fila, mas estava na Índia. O órgão foi transplantado em Geison. Antes de retornar ao Brasil, o viajante ainda decidiu seguir até os EUA. O plano original era continuar até a Patagônia, mas ele resolveu retornar para se preservar e fazer a cirurgia.
— Não sei se algo mudou em mim nessa viagem. Também não sei por que tinha de mudar. Sei que ficam as memórias e muitas histórias para contar. Agora é seguir em frente e esperar que tudo dê certo. Enquanto estamos vivos, é o que nos resta. Seguir em frente — diz Giovane, em uma cena gravada para O Sentido da Vida.
O transplante ocorreu em setembro, em Passo Fundo. Em 2017, já com o novo órgão, ele embarcaria para Portugal mais uma vez, de novo com Daiane, para gravar as cenas finais do filme, em Viana do Castelo. Também começou uma nova faculdade, de Engenharia Civil.
A principal dificuldade após o transplante foi a queda na imunidade, provocada pelos medicamentos contra a rejeição, o que fez Giovane sofrer várias infecções. Não resistiu a uma delas e morreu em fevereiro do ano passado, aos 29 anos.
Em entrevista recente ao podcast português A Beleza das Pequenas Coisas, o diretor Miguel Gonçalves Mendes evocou seu protagonista:
— Quando fui ao enterro do Giovane, o irmão dele estava a dizer que ele tinha voltado outra pessoa, nova, mais leve, mais alegre. A minha relação com ele era muito próxima. São coisas privadas, não no sentido de segredo, mas no sentido emocional. Ele era rabugento e eu também sou. Ele tinha um sorriso lindo. Foi uma das razões de o ter escolhido para o filme. Foi o sorriso e o olhar. Era um olhar que sabia que estava fadado ao destino que viria a acontecer. Esse olhar mudou com a viagem, mas voltou a ficar igual, porque ele sabia que ia morrer. O que posso dizer é que o Giovane morreu e que eu levei muito tempo para me recuperar da morte dele. Porque ele era mesmo meu amigo.
Daiane tornou-se amiga de Miguel e hospedou-se na casa dele no fim do ano, em viagem a Portugal. Ele permitiu-lhe assistir aos primeiros 40 minutos do filme.
— Foi um pouco triste e ao mesmo tempo emocionante assistir a tudo aquilo que Giovane viveu. Fica aquele sentimento bom de ver a felicidade dele, mas depois acabou acontecendo o que aconteceu. Foi traumático, porque por mais que soubéssemos da doença… A gente podia imaginar que ele não fosse viver muitos anos, mas não esperava que fosse acontecer, porque ele estava bem. O filme traz algum conforto porque ficaram eternizados os momentos que ele passou, momentos felizes — relata a irmã.
Daiane está ansiosa pela finalização e estreia do filme, porque acredita que ele vai gerar um impacto em relação à PAF, uma doença ainda pouco conhecida. Durante as filmagens, quando Giovane escreveu relatos para a internet, várias pessoas que tinham os sintomas entraram em contato. Algumas tinham medo de fazer o diagnóstico, e encontraram no gaúcho forças para investigar e tratar o mal. Daiane espera que esse efeito possa se multiplicar e que O Sentido da Vida se torne uma espécie de legado do irmão:
— Acho que o filme será uma lição de vida. Vimos várias pessoas da nossa família falecerem, como nossa mãe. O Giovane sabia talvez o que esperava por ele. Mesmo assim, tentou viver a vida o melhor que ele podia. Nunca reclamou de doença, de dor. É muito ruim quando a pessoa começa a ter os sintomas, mas ele nunca reclamou.
Uma prima de Giovane morreu recentemente em consequência da PAF. Geison continua bem.
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Silmara
24/06/2019 a 13:09
Interessante o artigo, bem realista e atual! Parabéns