Conecte-se conosco

Segurança

Após 3 meses do sequestro, médica tenta retornar a vida normal em Erechim

Publicado

em

Prestes a completar 31 anos, Tamires Regina Gemelli da Silva Mignoni brinca que 16 de fevereiro é um dos seus dois aniversários no ano. O dia 21 de outubro ficou marcado na vida da médica moradora de Erechim, no norte do Rio Grande do Sul, e de sua família, como data de renascimento. Às 22h57min daquela quarta-feira, três policiais civis ingressaram em seu cativeiro no Paraná. Era o fim de seis dias de pânico.

Desde o sequestro, às 11h30min de 16 de outubro, na saída da unidade de saúde onde trabalhava, quando foi abordada por um casal, até o resgate, foram 130 horas. Nesse meio tempo, vendada e amarrada, Tamires foi transportada, inclusive em porta-malas. Passou por dois cativeiros. O primeiro em Itá, Santa Catarina, e o segundo em Cantagalo, no Paraná, a 400 quilômetros de Erechim. O último era um cubículo, num corredor de dois metros quadrados, cercado de cinco portas trancadas. A médica tentava controlar o coração acelerado e as pernas bambas. Temia que o corpo não aguentasse. Rezava, meditava, alongava-se e buscava se manter convicta de que aquilo acabaria bem.

Reencontro de Tamires com o pai, após o resgate
Maiara Stumpf / Divulgação

Com tempo demais para refletir, imaginou diferentes finais para o pesadelo. Em nenhum deles, cogitou ser resgatada. Na sexta noite do sequestro, deitada em um colchão no chão, estava inquieta. Pela primeira vez, falara com o pai ao telefone — os criminosos exigiam R$ 2 milhões. Tamires tentava dormir, quando escutou vozes. Era a polícia. Uma ação interestadual havia sido montada para resgatar a médica. Guiados pelos gritos dela, os agentes cruzaram cinco portas, até acessar o corredor. Desorientada e desidratada, após ter perdido quase cinco quilos em seis dias, descobriu que estava a 30 quilômetros de sua terra natal: Laranjeiras do Sul, onde o pai é prefeito. Regressou para lá, onde foi recebida com festa.

Três meses depois, a ginecologista e obstetra está sob cuidados médicos e psicológicos para lidar com os traumas. Retornou para Erechim, onde vive com o marido, mas ainda não para o trabalho. Na moradia, tem um altar onde está o boné que recebeu dos policiais e outras lembranças de pessoas que rezaram por ela. Tamires garante que fortaleceu sua fé. Espera que Justiça seja feita para os sequestradores — um casal está preso e é réu pelo crime. Mas pelo que mais anseia é ter sua liberdade e paz de volta. Aguarda pelo momento em que poderá cuidar de suas pacientes, mas já aprendeu que, antes disso, precisa de cuidados.

ENTREVISTA
Você está prestes a completar 31 anos. Como está, depois de tudo?
Vai ser mais especial comemorar esse aniversário. É realmente celebrar a minha vida. O que vivi foi um pesadelo. Minha mãe comentou: “21 de outubro é sua nova data de nascimento. Então, a partir de agora, comemora o aniversário duas vezes.” É um renascimento. Poderia talvez nem estar aqui. Esse foi um grande medo que tive por vários momentos. Não voltar.

Você conseguiu retomar sua rotina?
Realmente, não esperava que esse pós ia ser como está sendo. Sigo desde então, há três meses, em acompanhamento, com psiquiatra e psicólogo. Ainda preciso tomar medicamentos. Tenho crises bem difíceis de ansiedade. Nunca tinha tido nada parecido. Minha vida não voltou ao que era. Não só profissionalmente, mas meu dia a dia também. O sequestro não foi só meu. Foi de todas as pessoas da minha família e os amigos próximos. O trauma que vivemos é imensurável. Liga para alguém e não atende, ou manda mensagem, demorou para responder, o coração já acelera.

O que mais mudou?
No início, tive alguma dificuldade para ficar sozinha em casa. A minha mãe ficou 30 dias direto comigo. Toda vez que entro, verifico a casa inteira, para ver se não tem ninguém. A todo momento, vêm flashes. Estamos tentando seguir nossa vida com tranquilidade, com gratidão por eu estar aqui. Nada disso foge do normal, no sentido do tamanho do trauma que vivemos. Os medos vão ficando um pouquinho menores. Tenho esperança. Estamos aprendendo a lidar com isso. O tempo vai passando e graças a Deus vai amenizando.

Vocês adotaram medidas de segurança?
Meu marido e eu, aqui na nossa casa, criamos nova rotina. Não saio de casa sozinha. É como se não tivesse ainda de volta minha liberdade. De ir no mercado, visitar uma amiga, ir no salão de beleza ou trabalhar. Hoje em dia, alguém vem me buscar, me acompanha, me leva. O pouco que saio é acompanhada. Não é nem de perto a minha rotina de antes. Continuo muito prisioneira de tudo ainda.

Você sente muita falta do trabalho?
É difícil falar sobre isso. São vários sentimentos. Com certeza, sinto falta porque adoro o que faço. Ao mesmo tempo, mescla com sentimento de responsabilidade que tenho com as minhas pacientes e minha profissão. Nesse momento, não estou apta a cuidar de alguém. Foi muito difícil entender isso. É um mix de saudade, de ira por alguém ter me tirado isso, e de saber que estou fazendo a coisa certa. Por vezes, também senti culpa. O exemplo que minha psicóloga me deu, para entender que está tudo bem não estar lá cuidando dessas mulheres, foi o seguinte: “Tamires, você está ferida, machucada. É como se tivesse sofrido um grave acidente”. Quando não tem nada físico, há mais dificuldade de entender. Quando ela me deu esse exemplo, acalmou um pouco meu coração. O que penso hoje é que preciso de ajuda, ser cuidada. Em seguida, vou estar 100% pronta para continuar fazendo o que fazia.

E o sequestro aconteceu justamente no seu trabalho.
De alguma forma, isso me causou um bloqueio, de pensar no trabalho, porque tudo aconteceu ali. Eu estava saindo do meu trabalho. Numa sexta-feira. Tinha o dia cheio. Pela manhã eu atendia no SUS e à tarde no consultório particular. Me tiraram do meu trabalho, literalmente. Foi difícil organizar esses pensamentos.

Como foi o momento do sequestro?
Tinha aberto o meu carro, estava sentando, só faltava fechar a porta. Quando fui com a mão para fechar, ele se interpôs com a faca e me mandou passar para trás. Ela (criminosa que foi para trás do veículo) entrou e me rendeu. Fiquei ajoelhada, com cabeça no colo dela. Percebi logo no início que era um sequestro. Na sequência, eles pararam, ele me amarrou, colocou a venda e tirou meu calçado. Depois, fomos para um mato. Fiquei com ela. Ele foi trocar de carro. Quando voltou, seguimos para o primeiro cativeiro.

Como você percebeu que era um sequestro?
Assim que fui rendida, disse: “Moço, você leva tudo. Tem minha bolsa, celular, carteira, meu carro. Pode levar tudo. Não vou fazer nada.” Ele respondeu: “Cala a boca. Daqui a pouco vai saber o que eu quero”. Naquele momento, entendi que era destinado a mim. Percebi que era planejado, não estavam roubando meu carro. Falei com Deus: “Não me abandone, esteja comigo e me dê forças”. Prometi que, acontecesse o que tivesse de acontecer, não tentaria fazer nada. Fiquei firme nessa decisão. Sem muita demagogia, fui muito forte, mesmo. Tenho noção da força que tive e que tenho. Continuo sendo forte, apesar das dificuldades.

O que te deu essa força?
É muito fácil te responder. Consigo falar em uma palavra: Deus. Sou uma pessoa de fé, católica. Porém nunca fui muito praticante. Quando tudo aconteceu, foram vários sentimentos, inicialmente ruins. O primeiro, quando me vi dentro do carro com duas pessoas me rendendo, foi culpa. Pensei: “Tamires, como não conseguiu sair?”. Depois, veio a incredulidade. Não parecia real. Estava indo almoçar na casa da minha sogra com meu marido. Em Erechim, nesta cidade que amo, tranquila. Não é uma cidade perigosa. Entendi que só por Deus tudo daria certo.

O criminoso te falou que era um sequestro?
Quando chegou no primeiro cativeiro, no fim da tarde, ele foi me desamarrar e disse: “Eu vou ficar uns dias contigo, preciso fazer umas negociações”. Tive certeza.
Você estava boa parte do tempo vendada, sem saber onde estava, como lidou com isso?
Sabe aquela sensação de que o coração vai sair pela boca? Aquele nervoso. Fiquei assim o tempo todo. A angústia, o coração acelerado, as pernas amolecidas. Às vezes, me preocupava com minha saúde. Então falava com Deus: “Hoje estou muito agitada, internamente. Me manda um sinal, que está tudo bem, que posso me acalmar”. Deus me trazia calmaria. Só foi possível toda essa força pela minha criação. Meus pais me ensinaram, a enfrentar a vida de frente. E porque Deus colocou isso muito forte no meu coração.

Chegou a se estabelecer uma rotina nos cativeiros?
A única rotina era a alimentação: café, almoço e jantar. O primeiro cativeiro era um quarto com banheiro. O segundo era muito pior. Um corredor com banheiro. A casa muito suja. Tinha muita aranha. Tive que sair matando aranha. Fui picada por uma. Parecia que fazia tempo que ninguém morava ali, limpava. Na hora da alimentação, eles batiam na porta, eu tinha de entrar no banheiro. Deixavam a comida, precisava contar até cinco para sair.

E como era o local?
Sentia mais calor por conta do coração acelerado. Mas senti muito calor, horrível mesmo, durante as viagens. Deitada no banco de trás, com máscara, venda nos olhos, toalhas sobre a cabeça, viajando num sol de 40 graus. Esses foram os momentos piores. A segunda viagem (até Cantagalo) foi a pior, demorou mais tempo. As duas foram sofridas. Não sabia onde estava indo. Não sabia que horas ia achegar. E ainda me preocupava com a estrada. Ele dirigia de forma perigosa. Fazia ultrapassagens, freava de forma brusca. Várias vezes pessoas buzinavam.

Fazia alguma ideia de para onde estava indo?
Não, não fazia. No primeiro, imaginei que não era muito longe. Não foi uma viagem de tantas horas. Mas não sabia para que lado. No segundo, achava que estava muito mais longe. Sei lá onde.

Teve algum momento que foi mais crítico?
Posso elencar alguns. O momento inicial, do rendimento: “Meu Deus, estou sendo sequestrada”. Foi um dos piores. Depois, dois momentos no meio do mato. Na primeira vez, ficamos uma hora e meia a duas horas. Na segunda, quatro a cinco horas. Meio do mato, descalça, amarrada, vendada. Ela do lado ameaçando. Na sexta, um pouco antes de chegar no cativeiro, ele me colocou no porta-malas. Não sabia que faltava pouco. Já tinha viajado um tempão. Foram uns 15 a 20 minutos, até chegar na casa. Esse momento foi horrível. Achei que ia morrer. Senti muito medo. Pensei que pudessem deixar o carro, soltar comigo em uma ribanceira. Não estava entendendo. Pensava: “estou há horas aqui nesse banco, por que agora tenho de entrar num porta-malas?”. Foi o pior de todos.

No que você pensava?
Pensava muito em Deus, na minha família, nos meus amigos. O amor pelo meu marido, pela nossa vida, nosso relacionamento. Era uma coisa que me dava muita certeza de que voltaria. Não acreditava ser possível que nossa história acabaria ali e assim. Falava: “Deus, você me deu de presente o amor da minha vida. Não pode ser assim que vai terminar.” Isso me dava muito acalento. Tinha certeza de que minha família e amigos estavam juntos. Movendo céus e terra para me tirar de lá. Imaginava que a polícia estaria, sim, envolvida. Mas não que tinha tanta gente boa, competente e dedicada, que ama o que faz. Foi uma surpresa muito boa conhecer essas pessoas. Muitos deles mantenho contato até hoje. Tenho carinho, amor, gratidão, por essas pessoas. Amor, esta é a palavra. Eu e toda a minha família.

Você imaginou ser resgatada em algum momento?
Tive bastante tempo para imaginar todos os cenários possíveis do desfecho. Um que realmente nunca conseguia imaginar seria o resgate. Imaginava que fosse ser libertada, em troca de alguma coisa, no mato, à noite, numa beira de estrada. Nunca imaginei ser resgatada. A maioria das pessoas não tem noção do trabalho que eles fazem. De como é perfeito e maravilhoso. Metódico, detalhista. Eles vivem para isso. Conhecendo hoje o trabalho da polícia, se eu sonhasse com isso, teria certeza de que eles iriam me encontrar. Mas lá eu não contava muito com essa possibilidade.

Você passou por dois cativeiros. Como foram esses dias?
Conseguia ter noção do escurecer, do ficar mais claro. Do pouco que podia ver de luz entrando. Pelas refeições que traziam. Me esforçava muito. Pensava: “hoje é dia da semana tal”. Me alongava. Caminhava. Não queria comer, mas comia, empurrando. Meditava, rezava. O tempo não passa. Não queria ficar deitada. Tinha medo de isso me deixar debilitada. Ia tentando criar uma rotina ali dentro. Tinha uma luz acesa o tempo todo, não desligava nem de noite.

Como foi o momento em que você falou por telefone com seu pai?
Ele (sequestrador) falou na noite de terça que eu iria falar com minha família, mas não quando. Acabou que foi na quarta. Pensei: “Tamires, é o seguinte, vai organizar certinho o que vai falar. Não pode se emocionar, não pode gaguejar. Tem de falar que está tudo bem, que está recebendo comida.” Sabia que isso era preocupação da minha família. Precisei organizar o que era importante eles saberem. Essa ligação era importante para eles. Ele colocou o telefone e falei. Depois, senti que não estava indo bem. Por isso, estava muito inquieta. Muito nervosa, acelerada. Com sensação de que alguma coisa não estava dando certo. E foi o dia que deu mais certo.

E como foi o momento do resgate?
Foi surreal. Essa é a palavra. Estava deitada no colchão do corredor, não estava conseguindo dormir. Todas as noites foram difíceis de dormir, comer. Era um corredor minúsculo. Aquele dia estava inquieta. Quando ouvi o primeiro barulho, pensei que podia ser briga entre eles. À medida que foram se aproximando da entrada, fui ouvindo mais nitidamente: “polícia”. Fiquei nervosa. Pensei: “Vão entrar e me render”. Logo em seguida, tudo muito rápido, arrombaram a porta da frente, o vidro estilhaçou. Ouvi, muito pertinho: “polícia”. Comecei a bater e gritar: “Socorro! Socorro””. Alguém deu um chute e arrombou a porta. Eram três policiais: “Vem que acabou! Acabou! Acabou!”. Comecei a chorar, saí descalça, pisei nos vidros. Chorava: “obrigada meu Deus, não estou acreditando”. Olhei para um deles: “Onde eu estou? Que horas são?”. Quando me disseram que era Cantagalo, ao lado da cidade dos meus pais, não acreditava. Foi surreal. Não esperava esse desfecho. Salvaram a minha vida. Tudo que eu acreditava, toda a fé que tinha, toda esperança que Deus colocou no meu coração se concretizou.

O caso gerou muita mobilização. Como foi isso?
Essa comoção das pessoas foi algo que me tocou de uma forma que acho que jamais sentirei novamente. É uma emoção sem tamanho falar sobre isso. Recebi amor em forma de oração de todos os cantos do Brasil, especialmente das cidades que tanto amo: Laranjeiras do Sul e Erechim. Para cada uma dessas pessoas, deixo minha eterna gratidão. O mundo precisa mais disso, afinal, a fé realmente move montanhas. A capacidade que alguns seres humanos têm de sofrer a dor do outro e colocá-la acima da sua própria, é certamente uma das maiores lições que aprendi na minha vida, pois vivi isso na pele. Desejo, de todo o meu coração, que Deus abençoe infinitamente a cada um que se dedicou a nos amparar no pior momento de nossas vidas e amenizar a minha dor e de minha família. Que eu possa sempre retribuir e que jamais deixe de ser merecedora de tanto. Agradeço mais uma vez também a todos os profissionais envolvidos no meu resgate, a todos os amigos e familiares, aos meus pais, sogros e ao amor da minha vida. Deus e tudo de bom que plantei nesses quase 31 anos, me trouxeram de volta.

O que espera daqui para a frente?
Espero paz. Espero que Deus continue comigo sempre e cada vez mais vivo. E que em breve consiga sentir paz no meu coração. Saber que tudo realmente voltou para o lugar. Que sou uma pessoa mais forte, depois de tudo que vivi. Quero que todos esses fantasmas desapareçam de vez. Viver minha vida na minha simplicidade. Fazer meu trabalho, da melhor forma possível. Prestigiar meus amigos, viver momentos bons com eles, perto da minha família, dos meus pais. Fortalecer meu relacionamento. Deus me permitiu continuar vivendo essa história de amor. Quero me reconectar com a Tamires de antes. Minhas crises de ansiedade, insônia, medo, não fazem parte de mim, e daqui a pouco vão embora. Espero que todos que convivem comigo também deixem isso cada vez mais lá no cantinho. Esquecer nunca vamos, mas que fique pequeno.

E para quem cometeu esse crime?
Espero a justiça. Que realmente paguem da forma mais dura, que tiver de ser, de acordo com aquilo que a justiça estipula. Acredito muito, confio nos órgãos policiais e no Judiciário. Quero que a justiça seja feita de forma correta. E, nem assim, acredito que eles possam sentir o que senti, viver o que vivi: o medo, a insegurança. Não sabia onde estava, quanto tempo ia durar, como ia acabar, se ia sair de lá. Eles, ao menos, vão saber. É inimaginável alguém achar que tem o direito de pegar uma pessoa, tirar ela da sua vida, das pessoas que a amam, colocar um valor na vida dessa pessoa, e querer trocar ela por dinheiro. Isso não deveria acontecer com ninguém.

Fonte: GAUCHA ZH

Entrar no Grupo do WhatsApp

+ Acessadas da Semana